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Ser mulher, para mim, é ter muita curiosidade sobre o que é ser homem. Eu sei o que
é ter privilégios em um país tão desigual, sei o que é ser branca, ser pessoa sem
deficiência e ter intactas as faculdades mentais. O único fator social privilegiado que
não conheço é o de ser homem. Só me cabe imaginar.
Imaginar o que é ter segurança ao sair de casa sem camisa, de short apertado sem
medo da sombra, sem ficar olhando 360 graus para antecipar algum perigo à
distância, não ser atacada por olhares invasivos. Como é que deve ser passar por um
grupo de homens desconhecidos, juntos numa esquina, e não ter certeza que vão
olhar para sua bunda? Como deve ser se juntar com amigos numa esquina à tarde e
olhar ostensivamente para bundas que passam?
Eu não sei como é sair de casa de dia, em um lugar tranquilo, com a plena segurança
de que consegue se defender? Como deve ser nem ter essa preocupação diária. Ir
para o trabalho sabendo que pode alcançar cargos de diretor, presidente, gerente,
sem se preocupar com barreiras invisíveis e, por isso, intransponíveis.
Como deve ser passar a juventude sem medo de engravidar? Não ter qualquer outro
plano submetido à maternidade. Não ter ansiedade sobre a dor do parto, algo
equivalente à sensação de 20 ossos quebrados todos de uma só vez? Não correr o
risco de ter a vida e o corpo implacavelmente alterados por, no mínimo, um ano,
independentemente de sua vontade. Algo que pode acontecer apenas porque a
natureza quer e deve-se estar alerta aos seus desígnios, sem arbítrio sobre o corpo, a
não ser que cometa um crime. Eu não quero dar a entender que a maternidade é ruim,
eu adoro ser mãe e há mulheres tristes por não poderem ser. É que eu fico curiosa
para saber o que é nem ter esse tipo de preocupação na vida, mensalmente. E
esperar feliz a menstruação, algumas vezes acompanhada de dores equivalentes a
um infarto. No caso, a hemorragia é externa e junta-se a ela a aflição com calças
brancas, estoque de absorventes, datas de viagens à praia e atenção redobrada para
não matar algum ser vivo. Fora agir de maneira a ninguém notar que isso tudo está
acontecendo.
O desejo não acaba com a idade, assim como a curiosidade. Será que a um homem
acontece de, em quase toda interação com uma mulher desconhecida, avaliar se está
ou não propondo intimidade por atos, palavras ou sinais? Vou dar um exemplo: será
que um homem vai fazer as unhas e fica preocupado se a calça está apertada e a
podóloga vai se sentir convidada a apalpar seu pênis? Será que um grupo de homens
em viagem de carro, que precisem parar à noite em um posto de gasolina suspeito,
depois de segurar por quilômetros o xixi, ficam com medo do frentista agarrá-los à
força? É esse tipo de coisa que eu queria muito saber.
Você pode dizer que, a essa altura da minha vida, eu já sei boa parte do que pergunto.
Sim, mulheres da minha idade são objetos de pouca atenção, e a mesma natureza
esfrega na nossa cara a indiferença. E é por esse motivo que nem posso saborear o
entendimento, já que lido com toda a transformação de uma segunda adolescência.
Ao contrário. O turbilhão hormonal acontece de novo, com alterações involuntárias
desgastantes, no sentido exato da palavra. Ossos, articulações, cabelos, pele
desgastados. Como deve ser a andropausa? Será que ela obriga o homem a se
equilibrar entre a tristeza no olhar que vê no espelho e a desonrosa saudade do olhar
de desejo dos outros?
Não quero diminuir a tensão que envolve o papel dos homens na dança do
acasalamento humano; mas será que esse jogo acaba para o homem do mesmo jeito
que para a mulher? Porque para nós, antes do fim, o capitão do time te coloca no
banco do nada. E você passa de artilheira para gandula, depois de cansar de ficar
esperando alguém lhe dar bola. É muito melhor quando são eles que não dão mais
conta de jogar e param, não antes de realizar uma última partida festiva com amigos
convidados e mulheres na arquibancada, que ainda vão dizer que estão todos bem de
cabelo branco.
Toda esta minha curiosidade sem fim (diferente deste texto) fica, obviamente, dentro
de uma limitação cisgênero e geracional. Pode ser que as jovens de agora não
tenham nenhuma dessas perguntas, mas duvido que não tenham outras. E imagino
que a mulher atual, com todas as suas manifestações e bandeiras, tenha ainda assim
aguçada uma característica que, independentemente de ser um substantivo feminino,
une os gêneros. Se existe algo realmente igualitário é a curiosidade.